Belo Horizonte, 23 de dezembro de 2018

Queridos irmãos,

desejo a todos que a alegria do Natal anime sempre mais nossa fé e fortaleça sempre mais nossa comunhão fraterna. O ‘gaudium’ do nosso encontro com o Menino Jesus seja o mesmo ‘gaudium’ que enche o coração ao encontrar o irmão de comunidade.

“Magnum gaudium”

“Nuntio vobis gaudium magnum... quia natus est vobis... Christus Dominus” (“Eu vos anuncio uma grande alegria, nasceu para vós... o Cristo Senhor”) (Lc 2,10-11), é o anúncio do anjo aos pastores de Belém, é um anúncio de alegria. De ‘grande alegria’, assim como é o nascimento de uma criança, não somente para os pais, mas também para os familiares.

A mesma alegria, o apóstolo Paulo deseja para a comunidade de Filipe: “Alegrai-vos sempre no Senhor! Repito, alegrai-vos!” (Fil 4,4). É algo de tão fundamental, esse convite à alegria, que Paulo o repete duas vezes no espaço de um versículo. A palavra aqui utilizada (o verbo khairô) é a mesma (khara) que os anjos anunciam aos pastores, no nascimento de Jesus em Belém. É, portanto, uma alegria que vem da presença salvadora do Senhor Jesus. A alegria de ter ‘Deus conosco’.

O Papa Francisco fala muito de ‘alegria’ (gaudium, em latim). Os documentos dele mais importantes iniciam com a palavra ‘alegria’: A alegria do evangelho (24/11/2013) e A alegria do amor (19/03/2016).

Na linguagem comum, o termo alegria perdeu seu uso em benefício da palavra felicidade. Essa substituição é sintomática para entender que tipo de humanismo estamos vivendo. Um humanismo que segue sempre mais o ‘eu’ em detrimento do ‘nós’, que encontra mais gratificante a digital life do que a human life. E o pior é que nós não nos preocupamos dessa mudança cultural que está levando para uma mudança antropológica, até nas comunidades religiosas!

O mundo grita ‘felicidade, felicidade...’, todos queremos alcançar a felicidade, e após alcançá-la ficamos mais vazios do que antes. O poeta Dante Alighieri expressa muito bem isso quando fala da loba que encontra no ‘caminho da vida’, que “após ter comido, tem ainda mais fome do que antes") (Inferno, Canto I).

As livrarias estão cheias de livros que prometem ‘felicidade’ em ‘dez dicas’, que ensinam técnicas para alcançar a felicidade! E, em contrapartida, encontramos sempre mais pessoas deprimidas e infelizes!

Alegria, felicidade, prazer

Conquistar a felicidade é o objetivo final de todos os nossos desejos e ações: ela nos acompanhará em todos os momentos da vida. Mas isso é um engano necessário ou um bem legítimo? E no então, devemos nos contentar com esporádicos goles de felicidade ou podemos planejar nossa vida de forma a esperar uma alegria estável, crescente e coerente?

No Evangelho, nunca se fala de ‘felicidade’, sempre se fala de ‘alegria’. O termo ‘alegria’ se encontra 28 vezes (ou mais). E é usado sempre quando se fala de ‘encontro’ de pessoas, como: “Logo que ressoou aos meus ouvidos a tua saudação, a criança pulou de alegria no meu ventre” (Lc 1,44).
Jesus traz alegria, e Ele quer nos dá essa “alegria em plenitude” (Jo 17,13), que “ninguém poderá tirar” (Jo 16,22). 

Há uma diferença entre alegria, felicidade e prazer.

Felicidade, vem do latim feliz e tem sua raiz no verbo feo, que significa ‘eu produzo’. O verbo está ligado à fertilidade. Feliz, no sentido de contente, satisfeito. É a felicidade do ‘homem rico’ que teve uma grande colheita (Lc 12,16-21).

Alegria vem do latim gaudium (gioia em italiano) que deriva do verbo gaudeo, gozo. Pertence à mesma família de ‘jóia’, que é uma coisa preciosa, a ser tida em alta estima.

Outro termo grego para expressar alegria é euphrosyne, formado por eu (bom) e pelo verbo phronéo, o que significa, ‘pensar’, ‘conhecer’.

A palavra ‘filosofia’ significa amor ao saber ou ao conhecimento, objetivo que geralmente alcança o sábio. A ligação entre alegria e sábio (phrónimos) é forte, e é contida no étimo, na raiz do termo phrón de phronéo.

A partir da terminologia grega, podemos, portanto, notar uma clara diferença de significado entre ‘felicidade’ e ‘alegria’.

A felicidade está associada ao ter, ao poder, ao sucesso pessoal. A pessoa está feliz pois alcançou um sucesso ou recebeu algo. Essa felicidade pode ser alheia aos outros, e, às vezes, pode ser até motivo de inveja.

Enquanto a alegria está ligada à sabedoria, à virtude de “discernir entre o bem e o mal” (1Rs 3,9), de escolher o ‘necessário’. A alegria é própria do sábio que não pensa apenas em si mesmo, mas olha para as necessidades dos outros. Portanto, a alegria tem um significado ‘comunitário’: eu posso ser feliz sozinho, mas para ser alegre preciso que todos os que estão ao meu redor estejam alegres. Um pai pode ser feliz pelo fato que o próprio time ganhou, mas ele não pode ser alegre se na família alguém está doente!

Portanto, fundamento da felicidade é o ‘eu’, enquanto fundamento da ‘alegria’ é ‘comunidade’.

Prazer’ é outra palavra que usamos para expressar um estado de ‘bem-estar’. Deriva do latim placeo, que significa ser apreciado. Tem a mesma raiz de ‘placar’, no sentido de satisfazer. ‘Satisfazer’ corresponde ao grego edoné, que implica uma sensação agradável (hedonismo). S. Freud fala do ‘princípio do prazer’) para indicar a satisfação de uma necessidade primária (alimentar, sexual, defensiva, domínio etc.). Seu significado leva sempre para a dimensão biológica, instintiva e corporal, ao contrário de ‘alegria’ e ‘felicidade’ que estão ligadas à psique.

Alegria: o sentimento do bom relacionamento

A partir desse esclarecimento terminológico, deveria ficar bem claro que a alegria não pode ser entendida no significado de felicidade e muito menos prazer (Cf. V. Andreoli, La gioia di vivere, Rizzoli, 2017).

A felicidade expressa a resposta a uma emoção causada por um estímulo, e, portanto, persiste até que o estímulo se esgote. É um bem-estar mais epidérmico.

A alegria é um sentimento mais profundo e dourador, pois não depende de um estímulo, mas do ‘encontro’ com pessoas com quem me dou bem e elas se dão bem comigo. É um relacionamento profundo entre o ‘eu’ e o ‘nós’, e é contagioso. Numa festa ninguém é alegre sozinho!

Ainda mais distante da alegria está o prazer, que se reduz à satisfação de uma necessidade, sempre pessoal e limitada a um momento particular, que se consuma em um tempo restrito (a fome é rapidamente apagada com a saciedade, a libido com um simples gesto erótico).

Se a felicidade é uma resposta imediata a um estímulo que produz em mim uma emoção, e passado o estímulo termina também a sensação de gratificação, isso significa que eu preciso sempre de novos estímulos para ser feliz. E, dessa forma, me torno um psicodependente das coisas (droga, sexo, dinheiro etc.). É por isso que a busca da felicidade está criando um mundo de indivíduos ‘dinheiro-dependentes’, ‘poder-dependentes’, ‘sexo-dependentes’. Um mundo de infelizes, como bem expressa A. Gury: “Nós somos viciados em estímulos rápidos... Nós estamos vivendo na era da ansiedade, as pessoas precisam de muitos estímulos para ter migalhas de prazer, ou seja, estamos na era dos mendigos emocionais”.

E como falar a um jovem, viciado em emoções, de ‘ascese’, de autodomínio, de limites, de ‘freios inibitórios’?

A alegria cria o ‘nós’ e se alimenta do ‘nós’. É algo que é dado e é também recebido. Ela não se fecha no ‘eu’ e no ‘meu’, mas se amplia até envolver os outros. É um círculo, onde cada um dá e recebe ao mesmo tempo. Por isso, a alegria pode ser descrita como uma figura concêntrica que se amplia sempre mais.

Enquanto a felicidade pode ser descrita como uma reta de pontinhos. Ela tem um início e tem um término, e precisa sempre de novos ‘pontinhos’ para ter novas emoções.

A alegria é uma experiencia de comunhão. Ela não é medida pelo poder, pelos títulos, pela riqueza. Aliás, a pessoa alegre não precisa de tudo isso.

A felicidade é uma experiencia do ‘eu’ (a psicologia do ego, iniciada com S. Freud, que gerou tantos infelizes!), que está sempre à busca de algo de novo.

Por isso, a pessoa alegre é também uma pessoa feliz. Mas não sempre podemos dizer o contrário.

A alegria na Vida Consagrada

“Nuntio vobis gaudium magnum” (Lc 2,10-11). A alegria está intimamente ligada ao anúncio da Boa Nova. O Senhor Jesus anunciou sua verdade para Sua alegria fosse em vós, e fosse completa (Jo 15,11).

Paulo VI dizia que “a alegria é a verdadeira herança cristã... O cristianismo não é fácil, mas é alegre” (Mensagem urbi et orbi, Domingo de Páscoa, 06/04/1969).

E Bento XVI: “Toda a minha vida foi atravessada por um fio condutor, isto é: o cristianismo dá alegria, amplia horizontes” (Benedetto XVI, Luce del mondo - Una conversazione con Peter Seewald, Roma, Libreria Editrice Vaticana, 2010, p. 27).

A experiência da alegria é necessária para uma vida saudável, mais do que a felicidade. São Tomás nos lembra que, assim como o homem não poderia viver na sociedade sem a verdade, ele nem sequer pode viver sem a alegria (Summa theologiae, II-II 114, a.2, ad primum).

Se isto se aplica a todos os cristãos, é especialmente válido para nós consagrados. Os consagrados, com a profissão religiosa, assumem o “compromisso de experimentar e mostrar que Deus é capaz de encher nossos corações e nos fazer pessoas alegres” (Papa Francisco).

Na abertura do Ano da Vida Consagrada, Papa Francisco fez um elogio lindo às/aos consagradas/os: “Onde estão os/as consagrados/as, há sempre alegria” (Carta para o Ano da Vida Consagrada, 2014). A partir desse elogio, a CIVCSVA enviou uma Carta às/os Consagradas/os com o tema Alegrai-vos (02 de fevereiro de 2014).

Para Papa Francisco, ‘vida consagrada’ e ‘alegria’ é um binômio inseparável. Basta mencionar algumas de suas expressões: “Que seja sempre verdade aquilo que eu disse uma vez: «Onde estão os religiosos, há alegria». Somos chamados a experimentar e mostrar que Deus é capaz de preencher o nosso coração e fazer-nos felizes sem necessidade de procurar noutro lugar a nossa felicidade, que a autêntica fraternidade vivida nas nossas comunidades alimenta a nossa alegria, que a nossa entrega total ao serviço da Igreja, das famílias, dos jovens, dos idosos, dos pobres nos realiza como pessoas e dá plenitude à nossa vida” (Carta apostólica às pessoas consagradas para proclamação do ano da vida consa-grada, 2014, II,1).

Ainda, na Mensagem da abertura do ‘Ano da Vida Consagrada’, escreve: “Mostrai a todos que seguir Cristo e pôr em prática o seu Evangelho enche o vosso coração de alegria. Contagiai com esta alegria quem se aproxima de vós, e então muitas pessoas dela vos perguntarão a razão e sentirão o desejo de compartilhar convosco a vossa maravilhosa e entusiasmante aventura evangélica” (Mensagem, 30/11/2014).

Outro convite explícito dirigido às pessoas consagradas: “Como consagradas vivei, em primeiro lugar, a profecia da alegria. Ela está em primeiro lugar. Em primeiro lugar está a profecia da alegria: a alegria do Evangelho. É uma profecia. Hoje o mundo precisa disto: a alegria que nasce do encontro com Cristo numa vida de oração pessoal e comunitária, na escuta diária da Palavra, no encontro com os irmãos e as irmãs, numa feliz vida fraterna em comunidade... Profetas de uma alegria que nasce do nos sentirmos amados e, porque somos amados, perdoados” (Papa Francisco, Discurso às participantes no Capítulo geral das Pias Discípulas do Divino Mestre, 22/05/2017).

Se o Papa Francisco apresenta a alegria como uma atitude habitual básica na vida das pessoas consagradas, ele também tem presente o fato de que histórias pessoais, condições concretas de vida, expe-riências vividas podem condicionar a alegria: “Reconheço, porém, que a alegria não se vive da mesma maneira em todas as etapas e circunstâncias da vida, por vezes muito duras. Adapta-se e transforma-se, mas sempre permanece pelo menos como um feixe de luz que nasce da certeza pessoal de, não obstante o contrário, sermos infinitamente amados. Compreendo as pessoas que se vergam à tris-teza por causa das graves dificuldades que têm de suportar, mas aos poucos é preciso permitir que a alegria da fé comece a despertar, como uma secreta, mas firme confiança, mesmo no meio das piores angústias” (EG 6).

Uma pergunta surge espontaneamente: “porque nós falamos tão pouco de alegria (gaudium) e falamos muito de felicidade”? Há até padres que deixam a vida sacerdotal dizendo: “Agora eu quero ser feliz”. E religiosos que deixam a comunidade: “Vou embora porque quero ser feliz!”.

Essa pergunta deve levar para uma séria reflexão sobre a vida das nossas comunidades. O tema ‘vida comunitária’ foi um dos temas que mais apareceu nos trabalhos do 47° Capítulo geral (outubro de 2018). Como está o relacionamento humano nas nossas comunidades? Quais as iniciativas para promover sempre mais uma vida comunitária em que cada um sente a alegria de estar juntos?

Penso que precisamos ‘construir’ mais alegria nas comunidades. Parece que estamos preocupados mais com a felicidade do que com a alegria! Que pena! Estamo-nos deixando levar pela mentalidade mundana.

As comunidades passionistas deveriam ser ‘laboratórios de alegria’ não de felicidade. Quando eu não vivo a alegria, então vou à busca da felicidade. E muitos conflitos e reclamações na comunidade dependem desse fator.

Na vida comunitária (família, ou comunidade religiosa), nossa primeira fonte de alegria é acolher e aceitar os irmãos pelo que eles são, com suas fragilidades e potencialidades. Acolhendo-os de coração, agradecendo a Deus por tê-los nos dados, e enviando para eles mensagens diárias de comunhão que tornam alegres ambos. 

Fonte de alegria é aceitar o lugar e o ofício recebidos como aposta para minha alegria. Não é o lugar ou o papel que me fazem alegre ou feliz. São eu tenho de criar condições para que o lugar seja fonte de bem-estar para mim e para os outros.

Na comunidade, a alegria flui abundantemente quando o ‘ter’ e o ‘dar’ passam espontaneamente de um para o outro, sem fazer pesar o papel social, o grau de instrução ou outros dons recebidos. Quando compartilhamos os dons recebidos, experimentamos uma alegria que é própria da partilha. Vivida dessa maneira, a diversidade e a gratuidade dos papéis não prejudicará a unidade, ao contrário, a fortalecerá e lhes dará aquela beleza que reverberará a alegria naqueles que a contemplam (U. Mura-tore, Felicità, Rd. Rosminiane, Stresa, 2012).

Permanece sempre o risco de que a alegria da comunidade religiosa seja perturbada e ferida por incompreensões, ciúmes, invejas, disputas de todos os tipos. Isso pode ser evitado, seja mantendo bem alta a consciência do bem comum, seja mantendo aceso o espírito interior que anima e sustenta nosso viver em comunidade. De fato, o espírito comunica a paz e a serenidade interior, que são as irmãs da alegria.

Um meio eficaz de verificar o grau de autenticidade da alegria da comunidade são os momentos de festa comum: um almoço, um aniversário, um lazer, um retiro, uma celebração eucarística, etc. Esses eventos são como termômetros para nós. Se, por exemplo, eu participo com aborrecimento e saio cansado e vazio, com a ansiedade de voltar logo para meu lugar, isso significa que o amor ao bem pessoal está prevalecendo sobre o amor para com a comunidade.

Ao contrário, se a reunião desperta em mim amor e carinho, e dá origem ao desejo de tomar iniciativas para o bem-estar de todos, isso significa que o espírito de família ainda está vivo sob as cinzas, mas deve ser revivido. Enfim, se eu participo da reunião com alegria interior e saio cheio de desejo para outros encontros, isso significa que o espírito de comunhão é robusto e pede apenas para crescer ainda mais.

Um recente documento da CIVCSVA fala de “vinho novo” para as comunidades (Para vinho novo, odres novos, 06/01/2017). É o vinho da alegria. Meu desejo para este Natal, é que cada comunidade da Província EXALT se torne uma ‘vinícola de alegria’.

Minha avó costumava dizer: “Uma cabana onde há alegria é melhor que um castelo onde há felicidade”. Para este Natal, eu peço ao Menino Jesus, que me torne um ‘infeliz alegre’.

A todos um Santo Natal e um prospero ano 2019 de paz e alegria.

Pe. Giovanni Cipriani
Superior provincial