Belo Horizonte, 21 de fevereiro de 2020

A "Contínua Grata Memória"
Solene comemoração da Paixão de Jesus Cristo

Queridos irmãos,

Neste dia celebramos solenemente o título da nossa Congregação, a Comemoração da Paixão de Jesus Cristo.

“O nosso santo Pai, São Paulo da Cruz, em carta de 27 de setembro de 1758, pediu a alguns religiosos para comporem o ofício da solenidade da Paixão. Foi o Pe. Tomás Struzzieri quem redigiu o texto, parecendo, porém, ter havido uma intervenção superior na seleção de algumas partes do texto original. O desejo manifestado por Clemente XIV de estender este Ofício a toda a Igreja fez com que se atrasasse a aprovação dos textos, o que só aconteceu a 10 de janeiro de 1776, já depois da morte de S. Paulo da Cruz. Como título da nossa Congregação, foi sempre celebrada solenemente.

Este Ofício, tendo presente todo o mistério da Paixão na sua di¬mensão mais ampla, para dar à celebração o carácter de universalidade das dores que Cristo sofreu para cumprir a vontade do Pai, tem três finalidades:

- celebrar a intervenção salvífica de Deus Pai, que enviou ao mundo o seu Filho único para implementar a nossa redenção com a sua morte na Cruz;
- ajudar-nos a fazer contínua memória desta suprema prova de amor
- e impulsionar-nos a sermos testemunhas e cooperadores na obra da redenção”.
(do Próprio da Congregação).

A Paixão de Jesus, princípio fundante da espiritualidade do nosso Fundador

Sabemos que o nosso Fundador é considerado um dos mais profundos místicos da Paixão de Jesus. O centro de sua espiritualidade, o ‘princípio fundante’ e o ‘centro unificante’ de sua vida e de seu apostolado é a Paixão de Jesus.

Para ele, a “Paixão de Jesus é a obra mais estupenda do amor de Deus por nós [1]” , o “Remédio para curar todos os males do nosso tempo [2]” , o “Meio mais eficaz para converter os pecadores”.

Para ele, a Paixão de Jesus é uma “Escola de santidade”. Por isso, ele convidava repetidamente, leigos/as, Religiosos/as sacerdotes a se colocarem na ‘escola do Crucifixo’, uma escola real, onde aprender todas as virtudes. E quem frequenta a escola da “sabedoria da Cruz chega a um amor tão conatural e generoso que o leva a agir heroicamente sem percebê-lo”.

Olhando para a Cruz de Jesus, Paulo da Cruz vê nela a revelação do amor divino, a “obra do amor infinito de Deus”. É por isso que muitas de suas cartas iniciam sempre com as palavras: “Que a Paixão de Jesus Cristo esteja sempre gravada em nossos corações”, ou “Passio in cordibus”.

O nosso Fundador fala da Paixão em termo de Memória da Paixão” (Memoria Passionis). Algo que deve estar sempre presente na vida, nos sentimentos e na vontade do cristão [3] .

Nas suas cartas, ele insiste continuamente em “fazer memória” da Paixão de Jesus. ‘Fazer memória’, para ele, é um exercício que envolve a pessoa em todas suas faculdades – emoções, inteligência e vontade – e a orienta nas escolhas e projetos de vida. Não é apenas lembrar os acontecimentos da Paixão, mas entrar no ‘mistério do amor. É um exercício interior que leva para a oração contemplativa.

Resultado desse exercício é uma resposta de vida ao amor de Jesus, é uma vida transformada, totalmente colocada a serviço dos irmãos e das irmãs e orientada a buscar a vontade de Deus.

Isso é possível quando a Memória da Paixão se fixa no coração (Passio in corde) e se torna uma atitude constante da pessoa. Somente assim, o exercício da Memoria Passionis levará para uma vida plenamente teológica, vivida na fé, na esperança e na caridade [4].

A meditação sobre a Paixão de Jesus leva para uma profunda comunhão com Cristo e para uma ex-periência pessoal do seu amor: «Se você está meditando sobre a agonia de Jesus no horto das oliveiras, transporte-se para esse horto e fique sozinha com Ele. Olhe para Ele com compaixão, com viva fé e amor, e diante daquelas gotas de sangue, pergunte a Ele: ‘Meu querido Jesus, por quem você sofre?’ Ouça o que Ele responde ao seu coração...» (Carta, III, 148-9).

Em outra carta, ele escreve: «Esse grande Deus, que por amor a nós se tornou humano e quis tanto sofrer por nós, está mais perto de você do que sua própria pele. Portanto, filha, fale com ele de coração para coração» (Cartas, II, 562).

Esse colóquio ‘de coração a coração’ com Jesus é o núcleo e o diferencial da oração e da meditação de Paulo da Cruz [5].

A ‘grata memória’

Paulo da Cruz funda a Congregação Passionista com uma única finalidade: alcançar “a santa união de caridade com Deus [6]” . Essa união se alcança mais facilmente através da ‘grata memória’ da Paixão de Jesus, pois a “Paixão de Jesus é toda obra de amor, e estando a alma totalmente perdida em Deus, que é Caridade, que é tudo Amor, se faz uma mistura de amor e dor, porque o espírito fica inflama-do por toda parte e está totalmente imerso em um amor doloroso e uma dor amorosa” [7] .

Para viver na contínua grata memória a pessoa se deve libertar da dependência psicológica das coisas e das pessoas, e especialmente da vangloria e da soberba, e se ‘conformar’ com Cristo, desejando compartilhar seu projeto de vida. Paulo resume isso no ‘Tudo’ e no ‘Nada’ de Paulo: desapego das coisas criadas, estar morto a si mesmo e ao mundo, para viver apenas em Deus e para Deus [8].

Para alcança essa radical libertação interior, devemos nos confrontar com Jesus, o Filho de Deus por nós aniquilado e humilhado, servo obediente até a morte na cruz (Fil 2,5-11). Essa contemplação prolongada, com fé viva, por várias horas do dia, gera na pessoa o desejo ardente de se conformar com o Cristo pobre, humilhado e crucificado.

Quem perseverar nessa ação libertadora se torna disponível para receber de Deus o “contínuo reco-lhimento interior” e é capaz:
1. de ter a autêntica ‘grata memória’ da caridade de Deus manifestada na paixão de Jesus;
2. de “viver na contínua oração e contemplação, que não consiste em rezar continuamente de joelhos, mas no alto recolhimento interior e permanecer totalmente mergulhado no amor de Deus” [9];
3. de se centralizar e se unir à paixão de Jesus, revelação do amor salvador de Deus.

Para Paulo da Cruz, todo o nosso agir deve partir da contemplação do Cristo crucificado e voltar para Ele como resposta de amor. E isso leva à prática constante e intensa das virtudes teológicas e morais pelas quais nos tornamos uma ‘memória viva’ ou uma ‘réplica vivente’ do Crucificado, e saremos capazes de promover a ‘grata memória’ nos outros, ajudando-os a se libertarem dos vícios que os escravizam.

Isso realiza-se quando vivemos no ‘alto recolhimento’: “Permaneçamos no nosso nada com suma deifica pureza de intenção, buscando em todo o divino Beneplácito, mantendo-nos em verdadeira fidelidade e alta resignação à Von-tade Divina, procurando que o nosso interior seja bem regulado, quieto, sereno, desape-gado de cada coisa criada, para que possamos ser a delícia de Jesus Cristo e nos tornar cada vez mais dispostos a receber a graça do recolhimento interior, para nos tornar verdadeiros contínuos adoradores do Altíssimo em espírito e verdade; e para esse efeito é conveniente nos familiarizarmos com o exercício das virtudes teológicas, atos frequentes de humildade de coração e orações jaculatórias, visitas frequentes ao Santíssimo Sacra-mento, comunhão espiritual muito frequente e, desta forma, sempre manteremos o fogo do amor santo aceso no altar do nosso coração” [10].

Unir-se a Jesus na Eucaristia é fazer nossa a sua ardente caridade expressa na obediência à vontade do Pai no nosso agir cotidiano: “Viva, respire e faça tudo com a vida e na vida de Jesus Sacramento [11]” ..

Para Paulo, é essa ardente caridade divina que deve envolver o passionista na mesma missão de Jesus: glorificar o Pai celestial, rezar pela salvação das pessoas e pela perseverança dos justos, ensinar a meditar a paixão de Jesus, a fim de viverem a ‘continua grata memória’ [12].

O voto especial

O voto especial que professamos, o primeiro voto, enquanto nos empenha a promover a ‘grata memória’ da Paixão de Jesus, exige, como pressuposto, que sejamos ‘memória vivente’ do Crucificado, somente assim o voto se torna o princípio unificador e motivador de toda a nossa espiritualidade e ação apostólica, como foi para o nosso Fundador.

Deste princípio, nascem as exigências características de uma espiritualidade apaixonada pelo Crucificado: solidão-oração, pobreza-penitência-humildade, obediência, simples e generosa, que tornam o passionista ‘homem apostólico’, ‘operário evangélico’. Características que brotam do carisma centrado no Cristo crucificado, esvaziado de toda a glória, de todo direito, feito servo obediente até a morte na cruz [13].

“Deve-se aprender, nas celebrações de cada dia, as disposições santíssimas de Jesus Cristo, especialmente a humildade de coração, a obediência total, a mansidão, a paciência e a perfeita caridade com Deus e com o próximo. Seja muito amante da oração, a imitação de Santa Teresa, pratique muito o recolhimento e a solidão interior. Insisto muito neste ponto do silencio, tão recomendado pelos santos padres. Se quiser levar uma vida santa permaneça em silêncio tudo o que pode, se deseja receber o dom da oração, permaneça em silêncio. «Como a argila fica em silêncio diante do oleiro, o mesmo faça diante do teu Criador». É uma máxima de ouro de São João Crisóstomo” [14].

O padre Jude Mead, passionista, destaca como é importante na Doutrina Espiritual de Paulo da Cruz, o tema do abandono total e a total aceitação da vontade de Deus. Para podê-la conseguir o único meio é o ‘nu sofrimento’, isto é, o despojar-se de qualquer desejo que não seja o de aceitar em tudo a vontade de Deus [15].

A beleza do carisma e da espiritualidade passionista

A espiritualidade passionista, ensinada e transmitida pelo nosso Fundador, é bela, simples, e sobretudo muito concreta e prática. É uma espiritualidade profundamente humana e humanizadora (no sentido de promover o humano na pessoa) porque ela tem sua origem na humanidade de Jesus em sua Paixão e morte. E é a partir do Crucificado que podemos criar um novo humanismo que resgate a centralidade da pessoa na vida política, social e econômica.

Alguém chamou Paulo da Cruz de Gigante da Cruz! Isso é verdade, pois, sua vida e seu ministério tiveram sempre a Paixão de Cristo como referência. A Paixão de Jesus foi a chave de sua santidade. Para ele, a Paixão de Jesus não era apenas uma devoção e não se reduzia a uma série de atos de piedade [16], ao contrário, era uma participação tão envolvente ao sofrimento do Cristo-Homem que se tornou para ele um estilo de vida.

“O amor a Cristo crucificado está à base da vida de São Paulo da Cruz e de todo o seu trabalho. Ele teve o raro privilégio de viver em íntima comunhão sobrenatural com Jesus sofredor. Ele sabia muito bem que esse amor o tornaria participe dos sofrimentos do Divino Mestre. Sua vocação era de ser uma manifestação viva do Senhor crucificado” [17].

Uma pergunta

De onde o nosso Fundador aprendeu a ‘sabedoria da Cruz’ da qual era repleno? A resposta é unânime: das chagas de Cristo crucificado. O Crucifixo era o ‘livro’ que ele levava sempre consigo, nas viagens e nas missões, que sempre tinha sob seus olhos, que carregava em seu coração. Por isso, ele podia escrever às pessoas que dirigia espiritualmente: “A meditação sobre a Paixão de Jesus é o caminho mais fácil para deixar os vícios e chegar à santidade”.

Vale ainda para nós hoje sua recomendação: “Se quiser passar bem o dia, inicia-o meditando por cinco minutos a Paixão de Jesus [18]” .

Desejo para todos a Passio in cordibus.

 

Pe. Giovanni Cipriani
Superior provincial

 

 

1. Cartas, II, 450, 26 de março de 1753.
2. Cartas, II, 213, 10 de janeiro de 1741.
3. «Minha filha em Jesus Crucificado... Diga abertamente ao Pai celeste, mas com profunda fé, que o mundo vive es-quecido da Paixão de seu filho Jesus, que é o milagre dos milagres do amor de Deus, a fim de que mande os servos desta Congregação a fazerem soar a trombeta da palavra divina com o intuito de despertar o mundo que está adormecido» (Carta a Lúcia Burlini, 17 de agosto de 1751).
4. Para Paulo da Cruz, o caminho para alcançar a contemplação divina é imitar a humanidade de Cristo: «não se pode passar à contemplação da imensa divindade sem entrar pela porta da humanidade divina do Salvador» (I, 289). Por essa razão, ele aconselha a levar sempre na oração algum mistério da paixão de Jesus: «a recordação dos so-frimentos de Jesus, juntamente com a imitação de suas virtudes, nunca deve ser abandonada» (Cartas, II, 166).
5. É isso que nos lembra, também, o Papa Francisco: “Levando com Cristo nossas cruzes e dificuldades diárias, aprendemos com Ele a capacidade de entender e aceitar a vontade de Deus ... O caminho para a santidade passa pela cruz. Nesta perspectiva, devemos olhar para todo sofrimento: doença, injustiça, pobreza e fracassos. Para nós, a Cruz é uma fonte de purificação, de vida e força no espírito ... Queridos doentes, encontrem consolo na cruz do Senhor Jesus, que continua a sua obra de redenção na vida de cada homem ... Queridos casais, mantenham um relacionamento constante com Cristo Crucificado, para que o seu amor seja cada vez mais verdadeiro, fecundo e duradouro” (Audiência geral, 13 de setembro de 2017).
5. Cfr.: PAUL FRANCIS SPENCER CP, ‘San Pablo de la Cruz y la Pasión de Cristo’, em L. D. MERINO - R. RYAN - A. LIPPI, ‘Pasión de Jesucristo, Ed. San Pablo, Madrid, 2015.
6. Regras 1775, cap. 1.
7. Cartas aos passionistas, p. 413, a G. Cioni 14 de julho de 1756. Ahern, Artola, Breton, Delaney, La Memoria Passionis nelle Costituzioni, Roma 1986.
8. Regras, cap. 4 e 6. Kilian McGowan, The Memory of the Passion, in The Passionists Compassion, 1985, N. 2, p. 17-21.
9. Lettere ai passionisti, p. 623, a P. Struzzieri nel 1748.
10. Lettere ai passionisti, p. 411-412, a Giammaria Cioni 05 de julho de 755. C. Brovetto, S. Paolo della Croce e la spiritualità passionista, in Le grandi scuole della spiritualità cristiana, Roma 1984, 597-620.
11. Lettere, I, 252, 278.
12. Costante Brovetto, La spiritualità di S. Paolo della Croce e la nostra spiritualità passionista.
13.As chaves de interpretação dessa espiritualidade são: a passagem da carta aos Filipenses 2,5-11; o discurso de Je-sus aos discípulos ao enviá-los em missão, Lc. 9,1-6; 10,1-12,16 etc.
14. Carta de Paulo da Cruz ao Pe. Antonio Pastorellí. Toscanella, 12 de janeiro de 1765.
15. J. MEAD, Spiritualità sacerdotale secondo la Dottrina Spirituale di San Paolo della Croce, 14.
16. Lettere II, 198, 4 luglio 1749.
17. P. POURRAT, S.S., Christian Spirituality, 4 t. (Westminster. Md.: Newman, 1955), IV, 399 e 403. Pe. Pourrat é um profundo estudioso da vida e obra de São Paulo da Cruz.
18. A um sacerdote escrevia: “De manhã, antes de sair do quarto, faça a meditação sobre a Santíssima Paixão de Jesus Cristo” (Cartas, III, 620, 13 de dezembro de 1760.). E ao leigo Giulio Palomba escrevia: “A memória devota da Paixão é o meio mais eficaz de ser santo em seu estado” (PAOLO DELLA CROCE, Lettere ai laici, I, II, 633, 8 luglio 1770).