Belo Horizonte, 06 de maio de 2022

VIDA COMUNITÁRIA:
"MAR DE AMOR E MAR DE DOR"

A vida comunitária religiosa anda entre alegrias e frustrações, sonhos e decepções. Na minha longa vida de religioso, já ouvi de tudo: "basta falar de vida comunitária... não vai mudar nada!"; "vida comunitária! Belas palavras... estou cansado de ouvir falar... nada muda"; por outro lado: "não tenho nenhuma dificuldade na vida comunitária... está tudo bem comigo... o problema é dos outros...". E assim vai.

Graças a Deus que a vida comunitária, também entre nós passionista, anda entre esses 'positivos negativos', se assim não fosse, a casa religiosa seria um cemitério (Papa Francisco) e nós não seríamos autênticos.

Podemos comparar a vida comunitária a uma bela sinfonia (pensem às belas sinfonias de Mozart, Beethoven etc.). A sinfonia está 'escrita' no pentagrama; o pentagrama tem uma 'chave' que dá o ritmo à sinfonia; as notas no pentagrama estão distribuídas segundo uma 'regra musical'. O musicista, que quer reproduzir no Órgão ou no Piano essa sinfonia deve conhecer a 'chave' e respeitar a posição das notas no pentagrama; se não respeitar, ao invés de uma sinfonia, sairá uma cacofonia.

É assim na comunidade religiosa. Para uma vida comunitária 'sinfónica', precisa saber qual é a 'chave' que dá o ritmo à comunidade; para nós passionistas é 'chave' é a motivação que nos leva a viver juntos: "São Paulo da Cruz reuniu companheiros para viverem em comum e anunciarem o Evangelho de Cristo aos homens" (Const. 1). A chave é a 'Memoria Passionis' (Memória da Paixão). Sem essa chave de referência a "banda se desbanda" (cada um vai para conta própria!). Não basta conhecer a 'chave', precisa também que cada 'tecla' mantenha sua 'identidade e 'toque' em harmonia como as outras.

Ainda não basta. A partitura é tocada por uma orquestra, composta por vários músicos; o músico deve tocar respeitando o ritmo dado pela 'chave', o tempo da 'nota' e em harmonia com os demais músicos. Aí temos uma sinfonia que alegra o coração. Na vida religiosa é a mesma coisa: a comunidade é uma orquestra, ela produz uma sinfonia se cada religioso 'toca' em harmonia com os demais religiosos. O solista não 'faz' uma sinfonia ( syn = com e phõnê = som'), mesmo que toque bem. Se queremos uma sinfonia devemos 'tocar' juntos e sem perder o ritmo indicado pela chave, a Memoria Passionis, a razão de sermos passionistas.

A palavra Comunidade nos diz que nós, os 'comunitários', temos algo em comum. O que temos 'em comum'? Temos em comum o que nos deixou São Paulo da Cruz: "viver em comunidade e anunciar o Evangelho da Paixão". Quando dizemos que na comunidade religiosa temos algo 'em comum', não estamos dizendo que temos 'em comum' a geladeira, o carro etc. É algo de muito mais profundo. A palavra comunidade vem do adjetivo comum. Comunidade é aquilo, cujo modo de ser é 'comum'. O que é comum? A palavra comum vem do latim: communis, que é uma palavra composta de com e munis. Com significa: com, junto com, um ao lado do outro, unido, junto; munis significa: agradecido, preparado para o serviço, cumprir a própria tarefa. O adjetivo munis vem, por sua vez, do substantivo latim munus-eris, que significa: tarefa, trabalho, cargo, serviço, presente etc. 

O munus é, portanto, o melhor de mim mesmo, o que de mais caro, precioso, sou e conquisto no dia a dia: a minha pessoa que doo como presente ao irmão de comunidade, como oferta de amizade profunda. Eis a comunidade: estar unidos para a troca mútua do melhor de nós mesmos. 'Tocar' a vida comunitária para produzir uma sinfonia maravilhosa é responsabilidade pessoal de cada membro da comunidade. E na medida que cresce esse empenho e responsabilidade, nos tornarmos sempre mais comunitários. Se bem tivemos entendido o significado etimológico da palavra comunidade, veremos que jamais podemos apelar à singularidade, ao individualismo. A 'singularidade é a negação da 'comunidade '.

Sessenta e dois anos...

Entrei no seminário (Aspirantado-Postulantado) em 1959. Sessenta e dois anos de vida comunitária. O primeiro sentimento é de alegria: ser membro da Congregação Passionista, minha família carismática, não menos importante da família biológica. Nos encontros e nas celebrações com o povo, manifesto esse sentimento publicamente (alguém até brinca comigo!): "a 'Congregação Passionista' é a família mais bonita que existe, é uma família maravilhosa! E o motivo é simples: é a minha família". Sem este sentimento não há razão, nem entusiasmo para viver em comunidade.

Talvez por causa da idade ou por motivo da formação recebida, hoje eu vivo a experiência do salmista: "Vede como é bom, como é agradável os irmãos viverem juntos! É como o óleo precioso sobre a cabeça, que desce pela barba, pela barba de Aarão, que desce até a gola do seu manto. É como o orvalho do Hermon, que desce sobre os montes de Sião: porque o Senhor derrama ali sua bênção, vida para sempre " (Sl 133).

Nem eu sei como cheguei a isso. Mas no dia a dia eu me pergunto: "O que posso fazer hoje para alegrar os meus coirmãos?". Se um coirmão, por outro lado, está triste, eu me pergunto: "O que fiz de errado hoje para ele está triste?". E como superior, não é sempre fácil conjugar, no mesmo tempo, a atitude de superior 'decidido e paterno' para não ser motivo de tristeza para alguém. 

A vida comunitária é um grande dom de Deus, compreensível apenas a partir da fé. As ciências humanas - psicologia, sociologia... - nos ajudam a compreender a dinâmica interpessoal dentro da comunidade, mas a beleza de 'viver em comunidade' vem da fé e da experiência. Parafraseando o princípio tomista, agere sequitur esse, devemos admitir que à raiz de cada comportamento errado (ou certo) há um pensamento errado (ou certo). Isso significa que meu modo de viver em comunidade depende da ideia que eu tenho de 'comunidade'. Parece-me que hoje substituímos o significado teológico de 'comunidade' pelo significado sociológico. E aqui começam os problemas, porque as 'regras' do Espírito Santo são diferentes das 'regras' da sociologia. 

'Comunidade': conceito teológico

O Papa Francisco, no decorrer do encontro com os Superiores Gerais de 2014, disse que "a questão central da Igreja e da Vida Consagrada Religiosa é a comunhão'. Olhando os últimos documentos da Igreja, percebemos o quanto isso é verdade. Hoje sentimos muito a necessidade de nos questionarmos sobre a vida comunitária. Quando sou convidado para dar cursos de formação para as comunidades religiosas, 90% dos/as superiores/as me pedem para falar sobre a "vida comunitária".

No diálogo com as comunidades, é evidente que perdemos o conceito teológico de comunidade. Nossa convivência comunitária tem um motivo teológico, não social. Não é a partir da sociologia e da psicologia que podemos "dar razão" da nossa vida em comunidade, mas a partir do nosso batismo. Fora desta realidade teológica, é complicado criar 'comunhão de vida' na comunidade religiosa.

A 'comunidade' tem sua origem e seu princípio no batismo. A 'vida de comunhão' é a 'vida nova' que recebemos no batismo. É um dom que se acolhe, não se conquista. Com o batismo, entramos em comunhão com a Santíssima Trindade, que é amor e comunhão. Nós nos tornamos 'seres em relação'. Esta é a novidade!

As três palavras do batismo, Pai, Filho e Espírito Santo, não são uma fórmula, elas criam uma 'ontologia': nos põem em comunhão com a Santíssima Trindade e nós nos tornamos "homens e mulheres de comunhão". Uma vida comunitária, fora da dimensão batismal, baseada em normas e leis, torna-se insuportável. No passado, a vida comunitária era marcada pela 'campainha'. Hoje a 'campainha' não funciona mais. É necessário 'teologizar a comunidade a partir da vida trinitária recebida no batismo. A comunidade é bela quando reflete a beleza da comunhão trinitária.

Se entendermos isso, tudo se torna mais fácil e bonito.

Individualismo, que tristeza!

O individualismo 'desnatura' o ser humano e aprisiona a vida de comunhão que recebemos no batismo. A 'vida comunitária' não é uma imposição, ela nos é conatural, como é natural a água do rio correr para o mar. 

A vida de relação e de comunhão reside em nosso ser biológico e teológico. A comunhão e a relação estão escritas em nosso DNA espiritual e biológico; viver em comunidade não deveria ser um esforço: é a nossa natureza, por vários princípios. Primeiro, porque fomos criados "à imagem de Deus" (Gn 1,27) e Deus é comunhão, é Trindade; segundo, porque nossa vida se originou do "amor-união" de duas pessoas, os nossos pais; terceiro, porque o nosso 'biológico' começou com a 'comunhão' de duas células, o óvulo e o espermatozoide. Em nós tudo fala de comunhão; portanto, deveria ser mais difícil viver o individualismo do que a comunhão.

Devemos admitir, no entanto, que, além do pecado (pecado = 'divisão', separação), existem outros fatores que dificultam a vida de comunhão 'inscrita' no nosso 'espiritual e biológico:

• as feridas relacionadas à nossa história pessoal, especialmente aquelas relacionadas à área da afetividade e da autoestima;
• a cultura do 'ego', iniciada com S. Freud, que não favorece a cultura do 'nós' (tão promovida pelo Papa Francisco);
• o consumismo que puxa cada vez mais para uma cultura da ''felicidade' (relacionada ao ego), em detrimento da cultura da 'alegria' (relacionada ao nós): eu posso ser feliz sozinho, mas a alegria é relacionamento, comunhão. E, ainda pior, pode acontecer que a minha felicidade se torna a infelicidade do outro; o que não acontece com a alegria: a alegria de um se torna a alegria de todos; ela é mais contagiosa do que o vírus COVID-19.

 A vida comunitária: "mar de amor e mar de dor"

Para nós Religiosos, a vida comunitária é 'constitucional'. Subestimar esta dimensão da vida religiosa significa perder nossa identidade. Não podemos negar, porém, que, às vezes, a vida comunitária é uma "maxima poenitentia". Isso porque nela está envolvida a nossa _fragilidade humana: incompreensões, ciúmes, inveja, competitividade... Carregamos nossas feridas' (psicológicas, morais, espirituais etc.): quando uma ferida não é curada, ela não nos faz sentir bem nem conosco mesmos nem com os outros, e qualquer relacionamento com o irmão pode se tornar causa de sofrimento.

A pessoa ferida, que não tem consciência de suas feridas ou as rejeita, no relacionamento comunitário, pode chegar a machucar e a ferir. Uma 'memóriaferida' (experiências negativas que fazem parte da história pessoal e estão gravadas na memória) condiciona negativamente as relações interpessoais. É difícil amar a si mesmo e à comunidade com uma 'memória ferida'. Precisamos tratá -la. E o tratamento é o amor. "A Paixão de Jesus é o remédio mais eficaz" para curar uma 'memória ferida' (parafraseando São Paulo da Cruz). De fato, só o amor do Pai, manifestado em Cristo na cruz, pode curar as feridas e transformá-las em 'chagas gloriosas', como as de Cristo depois da ressurreição.

Nós passionistas, na 'maxima poenitencia' vivemos o verdadeiro sentido passiológico da vida comunitária. O amor sempre tem uma dimensão sacrificial e uma dimensão de festa, de glória. Dimensões presentes na Paixão de Jesus narrada pelo evangelista São João (o Evangelho que é proclamado na celebração da nossa profissão religiosa). A dimensão sacrificial: o Filho que 'se sacrifica' por nós: "Eu ofereço a minha vida" (Jo 10,17); a dimensão de festa, de glória: "Por isso Deus o exaltou'' (Fl 2,9).

É o "Espirito Consolador' que Jesus nos enviou, que faz do amor sacrificial (os sacrifícios do dia a dia da vida comunitária) uma festa e uma alegria. O amor verdadeiro na comunidade é reconhecido por essas duas dimensões: o sacrifício (= serviço) e a alegria. Um amor-serviço que não cria alegria, não é amor verdadeiro; ao contrário, ele pode até ser uma patologia: uma comunidade sem alegria é uma comunidade doente. Mas também um amor que é somente uma 'festa' não é amor autêntico ou, pelo menos, não é 'amor passiológico'. O amor
passiológico leva para a vida. 'Vida' e alegria são os verdadeiros significados da palavra 'amor': amor do latim a-mors (mors-mortis = morte), significa 'sem-morte (a = privativo). Por isso, amar uma pessoa é dizer-lhe: tu não morres, tu estás vivo no meu coração.

O sacrifício (do egoísmo e do individualismo) é o reverso do amor. É esse sacrifício que nos torna homens de relacionamentos, de paz, de alegria. Quando uma criança, vê seu pai voltando do trabalho cansado, sujo e suado, ela não se envergonha dele na frente dos amigos, mas corre ao seu encontro e o abraça. O filho sabe enxergar no pai as duas dimensões do amor: o sacrifício pelo árduo trabalho do dia e a alegria de levar para casa o sustento para a família.

Onde há alegria, há também sacrifício; onde há amor, há também dor. Estas são as duas dimensões do amor passiológico do nosso Fundador: "A Paixão de Jesus é um mar de dor e um mar de amor". Duas dimensões que não podem ser separadas na vida comunitária. Uma comunidade que vive no serviço e na alegria é uma 'comunidade que atrai, uma comunidade vocacional', porque "O segredo é não correr atrás das borboletas e sim cuidar do jardim para que as borboletas venham até você' (Mario Quintana).

 

Pe. Giovanni Cipriani
Superior Provincial