A mística cristã: encontro com Deus através de uma vida de oração
07/07/2023

Autores: Fausto Silva Barros, CP e Marco Túlio de Azevedo, CP

Dentre as temáticas mais discutidas e estudadas ao longo de toda história da teologia cristã, a mística certamente tem um lugar de destaque e protagonismo. Inúmeros são os santos e santas místicos que com seu relato e suas experiências levaram a Igreja a debruçar-se sobre tal fenômeno.

A palavra mística vem o termo grego “μυστικ?” (mystiké) que significa algo relacionado a um ritual secreto, um segredo. Sua raiz vem do verbo mýein, que se traduz por silenciar-se. Tem seu sentido original utilizado no platonismo místico sob forte influência das Religiões Mistéricas gregas. Mystérion (μυστ?ριον) era um ritual secreto, composto por um processo, que consistia em várias etapas, a ser realizado por um iniciando a fim de alcançar o estado de ékstasis (sair de si mesmo) e manía (loucura) os quais são interpretados como uma proximidade com a divindade (LOSSO, BINGEMER e PINHEIRO, 2022, p. 13-15).

Durante muitos séculos não se separava o conceito de mística do conjunto da teologia. Foi apenas com Bernardo de Claraval que surge uma chamada literatura mística em si mesma. Ela se revela em continuidade com a tradição patrística como uma reação à teologia escolástica especulativa que se afastava cada vez mais de seus fundamentos contemplativos (HUOT DE LONGCHAMP, 2004, p. 1161). Pode-se dizer, em seu sentido mais clássico, que a Mística Cristã consiste em uma percepção de Deus de algum modo experimental que resulta em um gozo da alma por ocasião do advento interior de Cristo (HUOT DE LONGCHAMP, 2004, p. 1162).

Desde os primórdios, a Mística se mostrou vinculada com a ascese, ou seja, com etapas rituais que operam uma purificação que possibilita o sujeito realizar a experiência mística. Essas etapas são pré-requisitos para o encontro com o divino de modo mais intenso e profundo. Essas etapas foram sistematizadas por Orígenes em três estágios: a Purificação, a Contemplação e a Epoptiká, que compõe o caminho místico e se tornaram um referencial prático para a experiência mística (LOSSO, BINGEMER e PINHEIRO, 2022, p. 20-22).

Este itinerário espiritual pretende transformar as três zonas da personalidade sucessivamente investidas pela presença divina: a zona da sensibilidade com a etapa ascética da Purificação; a zona da alma que se trabalha através da etapa da Contemplação da criação para se chegar ao Criador, primeiro princípio; e a zona do espírito que é despertada com a etapa do Mistério, na qual acontece a Mística Nupcial com a relação entre a Igreja ou a Alma e Cristo (LOSSO, BINGEMER e PINHEIRO, 2022, p. 20-21).

Cabe salientar que o ápice da alma consiste em um ato livre e consciente que define o próprio do ser humano como à imagem de Deus. A união mística estabelece a harmonização da alma, que se mostra inteiramente passiva, permitindo sofrer o investimento divino, mas inteiramente ativa pois Deus age livremente nela (HUOT DE LONGCHAMP, 2004, p. 1165). Deste modo, a experiência mística se demonstra como o contato direto, intuitivo, sem mediação entre a inteligência e o seu objetivo, o Absoluto. Ou seja, intui-se a Deus como presente e têm-se o sentimento de sua presença imediata como um ser Transcendente (LOSSO, BINGEMER e PINHEIRO, 2022, p. 24).

A experiência mística, embora seja algo de significado profundo em nível individual na vida do místico, é também entendida como um fenômeno social, visto que a mística sempre reflete um mundo sociorreligioso que está por detrás de toda experiência. A mística também afeta e transforma o mundo através da sua capacidade de criar tipos de discursos e formar novos grupos religiosos (LOSSO, BINGEMER e PINHEIRO, 2022, p. 26).

Jesus Cristo é central para toda experiência mística cristã. Sua mediação redentora é constitutiva para qualquer forma de relação salvífica com Deus. Cristo é o modelo fecundo que permite ao ser humano adentrar no mistério de sua existência (LOSSO, BINGEMER e PINHEIRO, 2022, p. 29). Pode-se sistematizar a mística cristã em duas maneiras: a primeira é o misticismo da vida cotidiana fruto da graça divina, ou seja, “a experiência não tematizada da transcendência na base de toda atividade humana” (LOSSO, BINGEMER e PINHEIRO, 2022, p. 28) e a outra são as experiências místicas “especiais”, que não são um estado intermediário entre a graça e a glória, mas uma variedade da experiência da graça na Fé.

A mística cristã está diretamente relacionada com a busca de uma vida pautada na vivência das virtudes e na busca pela santidade. Isso se dá pela prática da oração, do silêncio, da meditação e do desprendimento das coisas materiais, como já afirmava São João da Cruz (2021, p. 98). A Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate n.14 (2018, p. 13) e a constituição dogmática Lumen Gentium n.40 (1997, p. 159-160) afirmam que toda e qualquer pessoa é chamada à santidade, a plenitude de seu ser cristão e à reta imitação da perfeição de Deus

A oração possui em si mesma um valor fundamental para a vida espiritual e mística do cristão. É a partir dela que se torna possível compreender que o percurso da união íntima com Deus não se dá pela via do conhecimento racional, mas pela fé. Por meio da oração e da graça, o místico experimenta um estado de intimidade e união com Deus, fortalecendo a conexão entre o criado e o Criador (DA SILVA, 2010, p. 77).

Na vida espiritual, a oração desempenha papéis significativos, pois permite aos cristãos desenvolverem, em seu cotidiano, uma intimidade pessoal com Deus, uma transformação interior e é um “[...] meio para haurir continuamente força de Cristo”, como afirma o Papa Bento XVI, na carta Encíclica Deus Caritas Est n.36 (2011, p. 67-68). A mística cristã parte do pressuposto de que por meio da oração os seres humanos assumem uma postura de espera e de abertura à Deus, sendo a busca pela união mística com o divino o objetivo principal da vida espiritual (BERNARD, 1999, p. 35).

A oração não enriquece o homem de conhecimentos científicos e analíticos a respeito de Deus e do mistério Salvífico, mas favorece a ele uma experiência de uma profunda atitude de filiação e passividade diante da ação de Deus. Pela fé e pela oração o cristão é introduzido na esfera divina e se coloca na presença de Deus. Segundo uma observação de Santo Tomás, '[...] a oração dirigida a Deus faz de nós seus familiares, [...]. Assim, tornado familiar de Deus pela oração, o crente prepara-se um acesso para orar com mais confiança ainda' (BERNARD, 2010, p. 171-172).

A tipologia mística cristã é uma classificação usada para descrever diferentes formas de experiência mística encontradas na tradição espiritual do cristianismo. Embora não haja uma tipologia universalmente aceita, alguns estudiosos e teólogos propuseram diferentes categorias para ajudar a compreender os fenômenos místicos. Há tipos de mística particularmente significativos, as quais buscam um caminho de interioridade, de conformidade com Cristo e uma união com Deus criador e Salvador (MOIOLI, 1989, p. 772-774).

A forma mística mais conhecida e estudada é aquela que parte das condições subjetivas do homem que se coloca em busca amorosa por uma união com o Criador. É um tipo de mística da essência ou mística esponsal, na qual a união é concebida e interpretada como experiência da unidade intima entre a criatura e o Criador. O segundo tipo místico é a busca por uma conformidade com o mistério de Cristo, há então um caráter interpessoal, não mais puramente subjetivo. Há ainda um terceiro tipo, chamado de mística apostólica, a qual é voltada para a participação da ação de Deus no mundo histórico e, graças a ela, à união com Deus criador e salvador (BERNARD, 2010, p. 232-233).

Esses três tipos de mística cristã, no entanto, não abarcam e não reduzem todos os tipos de experiência mística. Pois se assim fosse correria o grande “[...] risco de deixar evaporar-se a verdadeira história dos místicos cristãos ou de compreendê-la fora dos condicionamentos e das situações históricas gerais da fé” (MOIOLI, 1989, p. 774).

À guisa de conclusão, podemos afirmar que a mística cristã surge a partir de uma experiencia profunda e pessoal do místico com o mistério pascal de Cristo. Essa experiencia não suplanta a sua liberdade, mas favorece-o um pleno encontro consigo mesmo, com o mundo que o circunda e com o Criador, princípio e fim de todas as coisas. O místico é alguém que tem a sua vida transformada a partir da união esponsal com o transcendente.

Nessa perspectiva as experiencias místicas são pessoais e intransferível, e por mais que se tente descrevê-las racionalmente, a linguagem será sempre limitada e dificultadora da transmissão desta realidade. Ao longo do tempo cada pessoa a seu modo é chamada a união mística com o criador, contudo deve se evitar reduzir a experiencia mística aos fenômenos extraordinários. Na contemporaneidade, o ser humano é convidado a perceber a mística a partir do seu cotidiano, fruto da Graça divina, como uma forma de suplantar o imediatismo e as relações liquidas.

REFERÊNCIAS

BENTO XVI, Papa. Carta encíclica Deus Caritas Est: sobre o amor cristão. 11. ed. São Paulo: Paulinas, 2011.

BERNARD, C. A. Introdução à teologia espiritual. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

BERNARD, C. A. Teologia Mística. São Paulo: Edições Loyola, 2010.

CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Dogmática Lumen Gentium: sobre a Igreja. São Paulo: Paulus, 1997. p.101-194

DA SILVA, B. J. A fraternidade cósmica da perspectiva do cântico das criaturas: Uma contribuição de São Francisco de Assis para a teologia mística. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2010. 32-84 p. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/37870/37870_3.PDF. Acesso em: 4 jun. 2023.

FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate: sobre o chamado à santidade no mundo atual. São Paulo: Paulus, 2018.

HUOT DE LONGCHAMP, M. Mística. In: LACOSTE, J.-Y. Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Paulinas: Edições Loyola, 2004. p. 1161-1169.

JOÃO DA CRUZ, Santo. Subida do monte Carmelo. In: JOÃO DA CRUZ, Santo. Obras completas de São João da Cruz. Tradução de Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro. São Paulo: Cultor de livros, 2021. p. 14-315.

LOSSO, E. G.; BINGEMER, M. C.; PINHEIRO, M. R. A mística e os místicos. Petrópolis: Vozes, 2022. p.13-49

MOIOLI, G. Mística Cristã. In: DE FIORES, S. (org.).; GOFFI, T. (org.). Dicionário de espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 769-779.