Escrito por: Pe. Vanildo de Jesus Crucificado,CP
Respostas ou perguntas para a Pandemia que estamos vivendo? Ora, temos uma resposta, dada no sacrifício da cruz: Jesus Crucificado. Afirma Giorgini, no curso de espiritualidade passionista realizada em Ponta Grossa: “é preciso estudar o nosso carisma, o nosso apostolado, partindo da fonte, se queremos ser objetivos ao fazer uma diagnose da nossa situação, discernir a luz do carisma o caminho a tomar” (p.33). Na Cruz, portanto, encontraremos o caminho a tomar como resposta de amor e de dor, de angústia e de esperança. Eis o sentido de todo passionista movido de esperança.
O Carisma como Sentido de Resposta: A surpresa que nos assombra: a dor da Pandemia que tenta nos desestimular, mas o Mistério que nos assume e nos enche de vida: “Rasgai o coração, e não as vestes, e voltai para o Senhor!” (Jl 2,13).
Em nosso tempo, oferecer respostas de esperança, torna-se uma pretensão muito desafiadora. Pois saltam em nossas mentes perguntas. Elas nos deixam atordoados, confrontados por tantos sofrimentos. São questionamentos advindos de uma realidade “surpresa”, pois sempre se pensa que o sofrimento, principalmente na pandemia, vai estar no campo do outro e não da própria família ou de si mesmo. Ai, mais uma vez, egoisticamente perguntamos: por que comigo? Por que na minha família? E uma pergunta sincera que devemos realizar: E por que deveria ser com o outro? E por que deveria ser na família do outro? Então, mediante tantas perguntas, algumas circulam num ambiente coletivo: como podemos recuperar o nosso sentido diante dessa doença que mata o próprio lado e o lado do outro? Ou nos perguntar de forma mais profunda: Como podemos encontrar um caminho, uma resposta, um resgate de fé na dor humana que abarca todos nós?
A partir dessas meditações nascem a certeza vital do carisma da Paixão, ou seja, a dor humana presente na dor de Cristo. As angústias humanas são reveladas nas angústias do Filho eterno que na Cruz tem sede (Jo 19,28). Nossa resposta se encontra, portanto, nesse sofrimento da cruz, pois em tamanho sacrifício de amor – numa sede humana de um Deus Apaixonado – se engendra a nossa resposta de esperança. Ele sofre conosco, porque nos ama infinitamente. E por nos amar tanto assim fez do seu corpo sofrimento, para que os nossos corpos fossem refeitos, a partir de um viver interior na graça Dele.
Começamos a liturgia quaresmal, tendo presente no íntimo os 300 anos da nossa história-de-Paixão, voltados, justamente, para o Senhor Crucificado, dentro do ambiente carismático que assumimos para nossa vida: a dor da Pandemia, que significa o luto concreto descrito pelo nosso carisma.
Sim, é verdade que as lágrimas são mais abundantes. A carne sofrida e exposta tornou-se sacrífico pascal nos crucificados da história. A dor do presbítero que celebra sem sentir o “cheiro de suas ovelhas”. O trabalho pastoral da Igreja em saída torna-se Igreja-que-se-volta, a fim de experimentar os gritos de seus féis ao implorar o corpo do Salvador. Para aquele que entrou, e entrou no Mistério de um Deus solidão, percebeu que é na entrada desse Coração rasgado na Cruz que se encontra nossa esperança para, de fato, entender o que significa saída. A nossa saída não será mais a mesma. Pois não saímos no vácuo com as nossas ideologias ou pensamentos – todas elas se perderam na estrada – saímos, porque nos voltamos e deixamos rasgar os corações pelo Crucificado, donde nunca deveríamos ter saído.
Assim, a Igreja precisa ser uma igreja-que-se-volta, não somente para reconhecer os gritos dos de fora, mas para se aproximar do grito pujante da cruz daquele que está dentro, do Amado que lhe dá sentido, e a partir Dele, com Ele e por Ele, escutar e curar a dor humana. Daí começamos a olhar a dor, não com os nossos olhos, mas com os olhos de Jesus Crucificado totalmente despojado de suas vestes. Assim não seremos indiferentes à dor de quem sofre, pois Ele, na Escola da Cruz, nos ensinará o significado da compaixão. Errantes de nós se quisermos enxergar a dor sem se concentrar-na-dor do Crucificado. Pois, não daremos esperança, confiança e fé, sem rasgar os nossos corações na Cruz.
Encarar o Deserto da Pandemia: “O Espírito levou Jesus ao deserto” (Mc 1,12)
A divisão silábica e epistemológica da palavra en-ca-rar se escreve assim: en-cara-ar – sugere uma hermenêutica de olhar-para-cara com atenção enchendo-se de ar. Para a nossa reflexão aqui supõe olhar para pandemia recuperando o fôlego para viver, encarar, portanto, o problema e resgatando nesse deserto vazio, a esperança escondida. Assim, encarando a dor da pandemia, seguimos acreditando que o carisma nos renova a enfrentá-la. O nosso carisma se mescla a essa dor humana. O pior do Covid-19 é o roubo do ar dos pulmões das pessoas. Que a fé não seja tirada da alma e que não percamos o seu fôlego vital. Mas para isso precisamos assimilar o deserto de Jesus e o nosso deserto.
Jesus, em Mc 1,12 e em Mt 4,1 inicia sua missão, conduzido, a enfrentar o deserto das tentações, pelo Espírito. Em Lc 4,1 Jesus vai ao deserto “cheio do Espírito”. Ora, para início de qualquer missão, somos confrontados pela experiência de se desertar. Ao beber na espiritualidade do nosso fundador, o Sagrado Deserto Interior, torna-se o conteúdo por excelência de um itinerário de amadurecimento nos sofrimentos de Cristo. Pensar um deserto que no interior encontramos, é meditar uma Paixão experimentada por dentro pelo Espírito de Cristo. Pois, esse mesmo Espírito que convocou Jesus ao deserto, quer nos desertar, a fim de aprendermos a lidar com os sofrimentos do mundo, causados, inclusive, por tentações avassaladoras.
E somos levados, pelo Espírito, ao deserto da Pandemia. Na experiência do deserto a sede e a fome se intensificam pelo calor e pelo vazio. Isso significa falta, demonstra o quanto somos humanos. São Paulo da Cruz, já nos alertava a respeito disso, na carta direcionada ao Pe. Bartolomeu, 24 de dezembro de 1767, quando pedia para “deixar desaparecer o próprio nada no infinito Tudo, que é Deus” (p.16). Porque é no deserto que a gente se experimenta nada. Devemos permanecer neste processo de nadificação, diz nosso fundador, até que sejamos “reduzidos a cinzas”, reconhecendo assim o quanto somos fragilizados pelo peso da própria vida (cartas, 13 de setembro 1759, p.05). Nessa redução a cinzas o poder que achamos que temos se esfarela, o dinheiro que possuímos já não serve para mais nada, o lugar que habitamos já não nos sentimos satisfeitos. Estamos tomados pelo vazio do deserto frente à dor da Pandemia. Todas as coisas são postas de lado frente à dor da Pandemia. Nada mais é importante que se debruçar sobre essa dor que nos assola a todos.
A dor da Pandemia tem nos tornados iguais: seres humanos do sofrimento. Vivenciando na pele, ou seja, em nossa carne o que significa sofrer, a tal ponto de ficar sem respirar. Assim, inúmeras pessoas no deserto da Pandemia estão com falta-de-ar. Sufocadas clamam. Afogadas morrem. O deserto da solidão assombra de modo violento cada vítima da Covid-19. Algumas morrem sozinhas. Outras ainda escutam, ao menos, a voz de um agente de saúde. Mas não sentem a voz dos seus. Os seus familiares, sufocados em desespero sem saber do corpo, da presença do seu ente querido.
Os corpos das vítimas de coronavírus chegam envoltos em sacos pretos, enfaixados, dentro de um caixão lacrado, sem poder ver o rosto, sem poder tocar – importante para a despedida dos familiares que ficam com os seus corações partidos. Dor imensa não cabe no peito. Dor psicológica. Dor humana-espiritual. Muito mais que perguntar: onde está Deus? A pergunta profunda que se faz na alma: Onde está o corpo do meu pai, da minha mãe, da minha avó, do meu amigo? Não sei onde puseram... Não me deixaram despedir desse corpo que me tocou um dia, que me fez rir, que me fez chorar, que me fez conhecer um mundo pessoal jamais visto. Vê-se ao longe o corpo colocado na sepultura. Brota incertezas. Nascem repúdios e frustrações. Este problema tornou-se um estudo abundante para análises psicológicas. A dor não é brincadeira, pois não se alivia essa dor. Não se esquece dessa dor por qualquer palavra de sabedoria, porque a sabedoria já é essa dor. Já que essa dor se encontra na memória. E na memória não se apaga aquele que se ama. Pois na memória está o consolo de quem se lembra de como foi o toque, de quem se lembra de como foram os gestos mais intensos de uma presença que se ausenta.
É preciso, portanto, encarar o deserto da vida com suas desventuras, surpresas e mortes. Mas não podemos ir sozinhos ao deserto, devemos ir conduzidos pelo Espírito, senão a fidelidade ao carisma ficará na estrada, perdida. Ao encarar qualquer dor de ser tentado ao fracasso, devemos ser impelidos pelo Espírito, a fim de dar uma resposta certa à dor da nossa carne. Pois, a resposta certa para a missão que abraçamos não é dada pela nossa autonomia, embora sejamos impelidos de liberdade essencial. Ora a resposta nos é oferecida pelo Espírito. O próprio Espírito caminha conosco e nos faz lembrar a memória da nossa fidelidade ao carisma, enchendo-nos de esperança.
Dar esperança ao Sofrimento da Pandemia: “Somos afligidos de todos os lados, mas não vencidos, postos em apuros, mas não desesperançados” (2Cor 4, 8).
O verbo “dar” evoca gratuidade, espontaneidade, em breve síntese “oferecer um pouco de si sem pretensões interesseiras”. O que pretendemos oferecer, de fato, é a dimensão da gratuidade. Essa é a única pretensão: dar-se, simplesmente dar-se, fazendo da kenosis nossa maneira de se comportar espiritualmente no mundo. Com isso, vamos fazer nascer a esperança no sofrimento pandêmico. Ora, segundo a espiritualidade da kenosis, somos capazes de dar-se mediante a contemplação e a imitação do ofertório-de-Cristo (Fl 6).
Nos recorda Paulo em 2 Coríntios no conjunto do capítulo 4 sobre a esperança movida pela fé. Paulo pede que não desanimemos no exercício do ministério, pois esse ministério recebemos da misericórdia de Deus. Paulo busca nos convencer que a misericórdia nos envolve, de modo forte, que nada nos faz desanimar. O desânimo não faz parte de uma alma esperançosa, por mais que saibamos que o desânimo nos aparece na estrada. Quando aparecer, procuremos não deixar abalar as estruturas interiores.
Alicerçando, pois, todo o caminho da sua narrativa, Paulo então, nos recorda que “trazemos esse tesouro em vasos de barro”. Em nós, no deserto das fraquezas, pelo qual passamos, trazemos o Evangelho da Cruz no coração, Ele nos nutre para a existência ser vivida com alegria e entusiasmo, porque “somos afligidos de todos os lados, mas não vencidos pela angústia; postos em apuros, mas não desesperançados; derrubados, mas não aniquilados” (2 Cor 2,8). A aflição mexerá o nosso coração para viver uma angústia-sem-fim.
O tempo pandêmica que estamos vivendo é exemplo disso, parece não ter fim o número a cada dia de mortes. Somos todos os dias pegos de surpresa. São paroquianos, amigos, irmãos e irmãs, pai e mãe, avós e avôs, muitos outros sendo pegos por esse sofrimento mundial, e nós somos postos em apuros o tempo todo. Somando a isso, uma dor infernal e cruel do Presidente da república, o qual não auxilia numa boa palavra de esperança e de confiança espiritual, sendo ele “cristão”, estraga e sepulta ainda mais a alma do nosso povo com expressões simbólicas fortes para um psicólogo de perdas.
Paulo apóstolo apresenta o conteúdo meditativo enfatizando na importância de se manter assíduo na fé, apresentando um estágio de amadurecimento e aprofundamento, coloca em escala, o nosso fortalecimento – “a tribulação gera a constância, a constância leva a uma virtude provada; a virtude provada desabrocha em esperança” (Rm 5,5). Sempre, no final de tudo, Deus desabrocha no coração a esperança, pois a “esperança não decepciona”, uma vez gravada com perseverança no interior dos sentimentos.
Paulo Danei, nosso fundador, em sua infância, no sofrimento que estava passando, fortemente a fome, sua mãe dizia com fé, colocando em suas mãos o crucifixo: “vê, meu filho, quanto Jesus sofreu por nosso amor” (Caçador de almas, p.48). Foi através da sua valiosa mãe que se estendia pelo seu interior o cultivo pela morte e Paixão de Jesus. Por isso, desde cedo já depositava a sua esperança ao pé da Santa Cruz.
Nosso fundador, tinha a clara percepção que no solo da Cruz é o lugar onde mora nossa esperança humana. Por isso, nessa Escola, precisamos sempre reavivar a nossa fé: “Mantenha seu coração voltado para o céu, humilde, abismado no próprio nada, puríssimo nas intenções, tranquilo; desperte-o a miúdo com doces afetos, reavivando a fé na presença de Deus” (Cartas, 28 de dezembro 1756, p.18). Segundo Paulo, por mais áridos que estejamos, o que nos faz permanecermos na fé é a constância espiritual, o não-parar-no-caminho, porque “a realidade do Deus vivo é experimentada no processo de libertação e do êxodo como o Deus do caminhar” (dicionário bíblico, p.367).
Isso não significa que devemos partir da dor para falar do carisma, como nos faz refletir a revista do Jubileu: “Una questione ricorrentemente sollevata contro il nostro carisma passionista riguarda l’apparente riduzionismo dell’atto redentivo di Cristo ad un pathocentrismo o eccessiva enfasi sulla sofferenza”. (Identità passionata, Evangelizzazione nel “NOI” crocifisso, Jubilaeum). Ora, o nosso carisma é a junção do mistério pascal, o entendemos a partir do seu conjunto. Por isso, não se pode entendê-lo sem a dor, como não se pode entendê-lo sem a festa da ressurreição. O fazer memória já implicaria a experiência pascal no seu todo. Nisso, o passionista alimenta o mundo de uma esperança que é provocada por uma dor que nos corrói a todos, isto é, a dor de saber que sofremos, no entanto também o amor de saber que vencemos, superamos e somos resgatados pela misericórdia da cruz.
Estamos vivenciando, concretamente, o tesouro do carisma da Paixão. Por isso mesmo, como homens e mulheres da Paixão, ousamos ser mais fortes que a dor, ousamos ser mais firmes que o sofrimento, ousamos beber de um carisma que assumimos e nos enche de coragem. Coragem para, no final das contas, dizer: Ânimo amigo e amiga, irmão e irmã! Jesus Crucificado, aquele homem na cruz chagado, está assumindo nossa dor, está conosco sofrendo e gemendo, está recolhendo nossas lágrimas diariamente. Sim! Há 300 anos, os passionistas celebram a Páscoa da esperança, mergulhados na dor da humanidade.